Conhecer a história dos nossos ancestrais é uma forma de entender o presente e reconhecer que o nosso lugar no mundo é resultado da luta e das vivências dos que nos precederam. Quando se fala em turismo histórico quilombola em Alagoas, a Serra da Barriga, em União dos Palmares, é frequentemente mencionada. No entanto, no município de Água Branca, há outra localidade com uma trajetória igualmente rica, embora ainda pouco explorada: a Serra das Viúvas.
A comunidade é um importante reduto cultural e histórico de resistência quilombola. As 80 famílias que vivem na região mantêm viva as tradições herdadas de seus ancestrais. Em 2009, a comunidade foi reconhecida como quilombola pela Fundação Cultural Palmares, o que fortaleceu suas lutas por melhores condições de vida e equidade.
Com o objetivo de desenvolver o território e valorizar sua cultura, o Sebrae Alagoas promoveu um projeto piloto que levou agentes de viagem, especializados em turismo comunitário e pedagógico, para conhecer a Serra das Viúvas. Segundo a analista do Sebrae, Renata França, a ideia é que a região comece a receber visitantes de forma estruturada a partir de 2025 e, assim, estimular a inclusão do local nos roteiros das agências de turismo, contribuindo para a geração de renda e o fortalecimento comunitário.
“Nosso objetivo é testar uma forma de trabalhar que ajude a melhorar as condições de vida nas comunidades mais vulneráveis. A ideia é aproveitar as riquezas e habilidades que já existem nesses lugares para ajudar no crescimento e desenvolvimento da região de forma sustentável”, afirmou Renata França.
Roteiro de experiência
A região é conhecida pelo forte laço com a terra e pela continuidade de costumes e práticas culturais únicas, resultado de expressões históricas, como a Dança do Coco e o artesanato em palha de ouricuri. Desde agosto de 2024, o Sebrae já tem investido nas potencialidades locais, incluindo a agricultura familiar, a gastronomia e o artesanato, com o objetivo de transformar a Serra das Viúvas em um destino turístico estruturado. Um dos principais atrativos é a Trilha da Pedra do Vento, que funciona como um mirante natural.
O projeto propõe aos agentes de viagem um roteiro completo com uma experiência turística imersiva através do “circuito das tradições quilombolas”. As atividades são iniciadas com a contação de histórias sobre a comunidade e suas tradições, além da visita à casa de farinha, onde os turistas acompanham todo o processo desde o descascamento da mandioca até a torra final, onde saboreiam a farinha, a tapioca e o beiju.
Outra etapa do circuito turístico é a oficina de artesanato “Tranças da Terra”, na Casa da Mãe Bela, que permitirá que os visitantes confeccionem suas próprias peças derivados da palha de ouricuri ou adquiram produtos feitos pela comunidade. Encerrando o passeio, é possível vivenciar a gastronomia local, com um almoço temático com pratos típicos, preparado com ingredientes locais, complementando a experiência cultural.
Visita dos Agentes
Durante a visita, os agentes de turismo experimentaram as atividades propostas e deram feedbacks sobre melhorias necessárias. Ana Rogato, da Agência Borali, expressou gratidão pela oportunidade de conhecer a Serra das Viúvas e destacou a transformação proporcionada pela vivência na comunidade. “O que vivenciamos aqui, com o roteiro que vocês desenharam com tanta emoção e amor, é uma experiência transformadora”, afirmou.
Ela ressaltou a riqueza cultural apresentada, desde a trilha e a gastronomia até o artesanato e a casa de farinha, elementos que representam a essência da cultura alagoana. Ana também se comprometeu a levar esse aprendizado ao mercado, compartilhando com os clientes a autenticidade do local e colaborando para fortalecer a comunidade. “Agradeço de coração por este dia incrível”, concluiu.
Ana Marinho, representante da Agência Macaiok, especializada em turismo pedagógico, destacou a importância de aproximar estudantes das experiências e vivências quilombolas. “Queremos proporcionar uma aula viva, trazendo as pessoas para conhecerem isso pessoalmente, para fazerem uma imersão nas nossas raízes”, afirmou. Segundo Ana, muitos alunos, especialmente de escolas particulares, não têm contato com a realidade quilombola, que considera uma grande inspiração.
“Vocês são especiais do jeito que são, e isso é algo que precisamos levar para a juventude, para que conheçam a essência da vida”, disse ela, enfatizando a necessidade de preservar e transmitir as tradições locais. Para Ana, o turismo de experiência nas comunidades vai além da simples apreciação da cultura; é uma verdadeira aula de vida. “Desde a menina carregando o balaio na cabeça até a culinária, o relevo, as pedras e as fontes, tudo é parte de uma prática rica que precisamos valorizar e aprender com vocês”, declarou Ana.
O representante da Onilé Rotas Pretas, Diego Bernardes, destacou a importância do afroturismo como uma forma de valorização e fortalecimento da ancestralidade negra. “Estar aqui hoje confirma para mim que nada acontece por acaso. O acolhimento, o preparo da comida, e a troca de afeto que encontrei aqui são uma expressão poderosa de cuidado e resistência”, afirmou.
Diego enfatizou que as comunidades devem reconhecer e monetizar sua potência cultural. “Vocês são mulheres de negócios, comandam seus espaços e têm uma força imensa. É fundamental que as pessoas venham não só conhecer, mas também consumir, trazendo recursos e fortalecendo o que é preto e empreendedor. Quero trazer pessoas para vivenciar essa riqueza, mas de forma que respeite e colabore com vocês. É minha missão ajudar a colocar no mundo tudo o que vocês representam”, concluiu.
Associação das Mulheres Artesãs e Quilombolas
A liderança feminina é um diferencial da comunidade. A Associação das Mulheres Artesãs e Quilombolas da Serra das Viúvas (Amaqui), composta por 46 mulheres, desempenha um papel central no fortalecimento da identidade quilombola e na geração de renda. Acompanhadas pelo Sebrae, as suas integrantes participam de cursos e capacitações em empreendedorismo, design de artesanato e beneficiamento de alimentos.
As oficinas de beneficiamento, por exemplo, permitiram às artesãs diversificar sua produção com bolos e pães feitos a partir de mandioca, frutas, legumes e vegetais locais. Esses produtos já são comercializados em projetos como o Programa de Alimentação Escolar e o Projeto de Alimentação Saudável da Ufal. Além disso, o artesanato da comunidade está sendo resgatado e aprimorado. Com a ajuda de oficinas de design, as artesãs têm renovado suas peças para atender às demandas do mercado, resgatando tradições que estavam se perdendo.
Durante a visita dos agentes de viagem, a representante da Amaqui, Marlene de Araújo, demonstrou emoção e orgulho ao falar sobre a evolução do grupo que representa. “Eu fico muito feliz e me sinto como se estivesse cumprindo meu dever. Eu dizia que não queria que esse grupo acabasse, queria que continuasse, para ver até onde poderíamos chegar”, afirmou Marlene, ao ressaltar seu desejo de continuidade.
Segundo ela, a parceria com o Sebrae foi essencial para o crescimento das atividades. “Hoje, com a participação do Sebrae e de todas nós juntas, estamos produzindo muitos tipos de artes manuais”, disse. Marlene ainda destacou que a variedade das peças expostas reflete apenas uma parte do que o grupo é capaz de criar. Além das capacitações, a orientação do Sebrae também conectou a comunidade a eventos como o Festival de Inverno de Água Branca, onde as artesãs participaram de oficinas e apresentaram sua gastronomia quilombola.
A comunidade
A Serra das Viúvas, localizada a 4 quilômetros do centro de Água Branca, no Alto Sertão de Alagoas, abriga cerca de 80 famílias e 250 moradores, em sua maioria agricultores e artesãos. O destaque da comunidade é o artesanato feito com fibras naturais, como palha de ouricurizeiro e bananeira, que já alcançou reconhecimento internacional. A comunidade tem suas raízes na resistência africana, mantendo tradições que remontam ao período colonial. O nome do local se deve às três viúvas que residiam no local no início de sua formação.
A linguagem é parte fundamental da identidade cultural da comunidade. Estudada por pesquisadores da linguística, foram preservadas formas próprias de comunicação, como o uso frequente de pronomes de tratamento regionais e variantes linguísticas únicas. A subsistência é baseada na agricultura familiar, com cultivo de mandioca, macaxeira, feijão e milho,utilizados tanto para consumo próprio quanto para venda. Essa atividade é complementada pela criação de animais, como porcos, galinhas e bodes, sendo essencial para a economia local.
A comunidade possui uma rica tradição em artesanato, especialmente com o uso de palha de ouricuri e cipó. Desde o ano 2000, um grupo de artesãs vem expandindo suas produções, o que culminou na formação da Associação das Mulheres Artesãs Quilombolas da Serra das Viúvas, atualmente reconhecida internacionalmente.
Maria Izabel, conhecida como “Mãe Bela”, foi uma figura central e matriarca da comunidade. Ela dedicou sua vida ao artesanato, recepcionando visitantes e preservando o legado cultural do quilombo até seu falecimento em 2023, aos 82 anos. Mãe Bela foi fundamental para a valorização e perpetuação das tradições locais.
Marlene Araújo, filha de Maria Izabel e uma das líderes comunitárias, foi reconhecida pelo município de Água Branca como Patrimônio Imaterial, devido à sua habilidade artesanal e dedicação à cultura quilombola. Ela continua a representar e inspirar a comunidade em eventos e feiras de artesanato pelo país.